O que é o passe livre e por que ele não daria certo
Luiz Renato Oliveira Périco | 25 de janeiro, 2018 | Foto por Gianluca Ramalho Misiti
[Este texto foi originalmente publicado em 2014]
O Movimento Passe Livre tem chamado novos protestos por todo o Brasil por conta do reajuste das tarifas do transporte público. A grande reivindicação do grupo , como o nome diz, é o “passe livre”, ou seja, transporte público gratuito para todos, sem pagar passagem. “Catraca livre”, como dizem alguns. Parece uma boa ideia, mas você já parou pra pensar no que isso significa pra você, contribuinte, pagador de impostos?
Peguemos o exemplo da cidade de São Paulo. Segundo dados do Portal São Paulo em Movimento, da Prefeitura de São Paulo, a receita tarifária mensal média entre novembro de 2013 e outubro de 2014, ou seja, a soma de todas as passagens de ônibus pagas na cidade dividida pelo número de meses, doze, dá R$ 377,2 milhões. Multiplicando-se isso por doze, temos que, em um ano, a receita tarifária, foi de, aproximadamente, R$ 4.500.000.000. Sim, quatro bilhões e meio de reais. Muito dinheiro.
Caso o passe livre tivesse sido implantado na cidade de São Paulo após os protestos de 2013, R$ 4.500.000.000 deixariam de ser pagos às empresas de ônibus, uma vez que as passagens deixariam de ser pagas. Obviamente, este dinheiro, que remunera os empresários, paga os salários de motoristas, cobradores, mecânicos e outros funcionários das viações e custeia a manutenção da frota de ônibus, teria de ser compensado de algum jeito. A prefeitura teria de bancar esse valor, ou seja, tirar R$ 4.500.000.000 dos cofres públicos para cobrir o dinheiro que deixou de entrar com as passagens.
Para conseguir fazer isso, a prefeitura poderia fazer duas coisas. A primeira é remanejar recursos, isto é, usar o dinheiro que seria empregado em outra coisa para pagar o dinheiro das passagens. Ela teria de atrasar uma obra ali, aumentar menos o salário de alguns funcionários, ou mesmo deixar de aumentar, deixar de reformar alguma escola ou dar manutenção em alguns equipamentos de postos de saúde e de hospitais, por exemplo, para juntar quatro bilhões e meio de reais e dar ás empresas de ônibus e vans.
O que isso significaria para os cofres da prefeitura? Olhando-se a Lei Orçamentária Anual de 2014, que é a lei que diz o quanto de dinheiro vai entrar e o quanto vai sair dos cofres da cidade, vemos que R$ 4.5 bi significam aproximadamente 17% de todo o dinheiro previsto que seria pago pelos cidadãos em imposto, taxas e contribuições em 2014 (R$ 20,5 bi) e 9% de todo o dinheiro previsto para entrar na prefeitura ano passado (R$ 50,5 bi).
Mas o quê dá pra fazer com R$ 4,5 bi? Dá, por exemplo, pra comprar 1500 aparelhos de ressonância magnética de R$ 3.000.000,00. Dá pra comprar 5000 ônibus biarticulados de R$ 900.000,00. Dá pra fornecer o subsídio máximo de R$ 25.000,00 do “Minha Casa, Minha Vida” para 180 mil famílias e construir 30000 casas populares no valor de R$ 150.000,00. Dá pra pagar o salário base dos professores da rede municipal de R$ 3.000,00 por um ano para 125 mil professores. Dá pra construir 19 pontes estaiadas como a que atravessa a Marginal Pinheiros a um custo de R$ 230 milhões. Enfim, dá pra fazer muita coisa.
Não precisa explicar muito pra entender que usar os R$ 4,5 bi que estavam reservados para outros gastos para pagar o passe livre significaria que algumas obras seriam atrasadas ou mesmo deixariam de ser feitas, alguns serviços prestados pela prefeitura, como saúde, educação, teriam sua qualidade, que já não é grande coisa, prejudicada.
A segunda forma de a prefeitura conseguir pagar o passe livre é aumentando sua receita, ou seja, conseguindo que mais dinheiro entre nos seus cofres. A principal forma de a prefeitura conseguir dinheiro é com tributos, que são os impostos, taxas e contribuições que nós, moradores da cidade, pagamos. Para conseguir mais dinheiro, a prefeitura teria que aumentar impostos e taxas.
Os principais tributos pagos para prefeitura são o IPTU e o ISS. O IPTU é o imposto que você paga por ser dono de um imóvel. Alguns podem achar que esse é um imposto que só rico paga, mas isso não é verdade. Muitas pessoas passam anos trabalhando duro para conseguir comprar sua casinha ou conseguir uma melhor para sua família, muitos deixam de aproveitar finais de semana, feriados, até férias, para construir sua própria casa. Além disso, o valor desse imposto é repassado para as pessoas que pagam aluguel, que normalmente não tem renda para conseguir um imóvel próprio.
A prefeitura pode aumentar o IPTU para pagar o passe livre, como já fez em 2014 para bancar os subsídios dos ônibus. Mas isso significaria um aumento nas contas dos proprietários de imóveis, inclusive aqueles que trabalham duro e controlam os gastos para conseguir pagar prestação e os que passaram anos trabalhando para conseguir comprar sua casa ou mesmo construí-la. Obviamente, esse aumento seria mais sentido pelos trabalhadores menos abastados do que pelas pessoas mais ricas, mesmo com o chamado IPTU progressivo.
Além disso, haveria um aumento do imposto repassado para quem paga aluguel, o que, na prática, significaria aumento de aluguel. Também o aumento de IPTU de imóveis não residenciais, como lojas, restaurantes e outros comércios e prestadores de serviços, seria repassado para os consumidores, isso é, haveria aumento de preços. Obviamente, esse aumento pesaria mais sobre os pequenos comerciantes da periferia do que sobre as grandes e conhecidas lojas.
Já o ISS é o imposto que pessoas e empresas prestadoras de serviços pagam por prestar esses serviços. Em São Paulo, serviços prestados por autônomos e profissionais liberais não pagam ISS, mas convênios e laboratórios de exames médicos, buffets de festas, o veterinário do seu bichinho, eletricista, encanador, escola particular, conserto de rádio e tv, o cineminha do fim de semana, a xerox autenticada no cartório, entre muitas outras coisas, são serviços prestados e pagam ISS, desde que não prestados por autônomos ou profissionais liberais. Assim, toda vez que você paga por uma dessas coisas, o preço do ISS está embutido. O valor do ISS é de, no mínimo, 2% do preço do serviço e, no máximo, 5%, dependendo do tipo de serviço. Assim, ao contratar um serviço que custa R$ 100, você vai pagar, no mínimo, R$102, e no máximo, R$ 105.
Para conseguir pagar o passe livre, a prefeitura pode aumentar o ISS dos serviços em que já não se paga 5% do preço de imposto. Obviamente, esse valor seria repassado pra que contrata esses serviços, ou seja, haveria aumento de preços.
Mas de quanto teria que ser esse aumento de tributos? Bem, como vimos, R$ 4,5 bi equivalem a 17% de todo o dinheiro que a prefeitura receberia com impostos, taxas e lucros. Assim, deve haver um aumento de 17% na arrecadação desses tributos, entre reajustes de contribuições taxas e impostos, sendo que o mais afetado seria o IPTU, trazendo todos os problemas já explicados para proprietários, locadores, comerciantes e consumidores.
A coisa, entretanto, é ainda mais complicada do que parece. Com o aumento do IPTU em até 10% para imóveis residenciais e até 15% para imóveis comerciais feito pela prefeitura e ainda aumentando ITBI, que é o imposto que se paga quando se compra um imóvel, a prefeitura pretende arrecadar apenas R$ 800 milhões a mais, quase seis vezes menos. Quanto mais ainda seria necessário aumentar para atingir os R$ 4,5 bi? Há ainda uma terceira coisa que a prefeitura pode fazer: criar uma dívida de R$ 4,5 bi. Mas não precisa explicar porque isso seria ruim, né?
Há outros problemas criados pela gratuidade da passagem independentemente da forma como o dinheiro entre, como o aumento artificial da demanda e consequente aumento dos custos. Com o passe livre, pessoas que normalmente não utilizariam o ônibus, como as que andam distâncias curtas de um a três pontos, as que andam de bicicleta ou de carro, ou ainda pessoas que se organizam para fazer uma só viagem para fazer o que tem que fazer, ao invés de duas, três ou mais viagens serão incentivadas a fazer mais viagens de ônibus, uma vez que, aparentemente, essas viagens não estão custando nada para eles.
Afinal, por que você se cansaria andando um ou dois pontos se você pode ir de ônibus ou de van “de graça”? Com mais gente usando ônibus e mais viagens sendo feitas, mais dinheiro a prefeitura terá que gastar com o sistema, dando ainda mais dinheiro para as empresas. Além disso, o passe livre ajudaria a piorar o problema da superlotação, já que, com a aparente ausência de custos, teríamos mais gente usando transporte coletivo.
Teríamos ainda total falta de controle da entrada do dinheiro nas empresas. Se você prefere ir a pé ou de bicicleta, pega carona ou utiliza ônibus fretado pela empresa, você não passa o bilhete na catraca e, portanto, o dinheiro não entra na empresa. Com o passe livre, o dinheiro das empresas teria de ser previsto na Lei Orçamentária Anual e conseguido, por remanejamento ou impostos e taxas, independentemente de você usar o serviço ou não. Ou seja, ainda que você preferisse não utilizar o ônibus, você pagaria pelo passe livre através de impostos e taxas.
Pior, sabendo que o dinheiro das empresas dependeria menos de os usuários preferirem utilizar os ônibus do que do quanto os políticos reservariam de dinheiro para eles, os empresários não teriam incentivo para melhorar a qualidade dos seus ônibus e teriam mais brechas para esquemas de corrupção , já que haveria mais dinheiro controlado pelos políticos.
Então, não haveria nada a ser fazer? Afinal, o preço da passagem em São Paulo é um dos mais caros do mundo e isso certamente afeta os mais pobres.
Uma coisa a se fazer é descentralizar e desregular o transporte público, como foi feito em Lima, capital do Peru, em que cerca de 80% da população usa transporte público. Empresas, cooperativas ou mesmo pessoas donas de ônibus e vans poderiam oferecer livremente seus serviços de transporte. Como em um mercado desregulamentado e livre o lucro de quem oferece o serviço depende unicamente de conseguir atrair mais clientes, isso faria com que empresas e donos de ônibus e vans oferecessem preços mais baratos e linhas com caminhos e horários que melhor atendessem a necessidade dos usuários. Além disso, permitiria a criação de linhas muito específicas, como, por exemplo, uma que saísse de um bairro distante e isolado para, em determinado horário, levar pessoas desse bairro para o centro ou para um terminal de ônibus.
Outra medida seria o estímulo a carona, permitindo, por exemplo, que carros com lotação total de 5 pessoas fossem isentos do rodízio ou que pudessem utilizar o corredor de ônibus. Parece que essa é uma medida que não ajudaria os mais pobres, mas quando se faz as contas, isso se mostra falso. Usemos a tarifa antiga de R$ 3,00. Pegando duas viagens por dia durante 22 dias úteis, temos R$ 132,00. Multiplicando-se pelas 4 pessoas caronas do carro, temos R$ 528,00. Considerando-se o preço da gasolina a R$ 2,70 e que o carro faça 9 km/l , dá pra fazer viagens de ida e volta de quase 40 km durante todos os dias úteis a custo zero para o motorista e a preço velho do ônibus para os caronistas. Em viagens mais curtas, a viagem custaria ainda menos.
Uma outra medida ainda poderia ser o subsidio de passagem para os mais pobres. A prefeitura poderia cobrar meia passagem de quem ganha menos de um salário mínimo por exemplo. O impacto sobre os cofres públicos seria infinitamente menor que os R$ 4,5 bi do passe livre e beneficiaria quem realmente precisasse. A prefeitura ainda poderia dar esse dinheiro da metade da passagem diretamente na mão do usuário, ao invés de dá-lo para as empresas, o que lhes permitiria escolher como preferem usar o dinheiro, se com ônibus público, se alugando um fretado com os colegas de firma ou mesmo indo a pé e usando o dinheiro com a família, por exemplo.
Medidas não diretamente relacionadas com o transporte público também podem ter efeitos diretos nesse problema. Incentivos fiscais, redução ou mesmo isenção para quem criasse empregos na periferia faria com que boa parte da população trabalhasse mais perto de casa e fizesse viagens mais curtas e rápidas, e, portanto, mais baratas. Poderia se incentivar que grandes empresas fornecessem transporte fretado, com horários alternativos ao de pico, o que tiraria muita gente de dentro do ônibus. Em contrapartida, a prefeitura ofereceria redução de taxas e impostos.
Resumindo, como disse o economista norte-americano Milton Friedman, não existe almoço grátis. No nosso caso, não existe ônibus grátis. “Passe Livre” parece uma solução simples e fácil, mas como disse o economista francês Frederic Bastiat, é preciso estar atento não apenas para os efeitos de uma medida que se podem ver imediatamente, mas também para aqueles que não se veem logo e que poderão causar muita dor de cabeça no futuro. Uma solução simples pode esconder um grande problema. No caso, um problema de R$ 4,5 bi.
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Luiz Renato Oliveira Périco participou do Programa de Coordenadores do Students For Liberty Brasil (SFLB).
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