Por amor à liberdade alheia!
Diogo Costa | 16 de fevereiro, 2016
Se pensarem bem, a liberdade das pessoas comuns é algo demasiado cotidiano para se transformar numa aventura intelectual. A história da pobreza perpétua vira quadro do Sebastião Salgado. A história da riqueza fácil vira cena do Leblon de Manuel Carlos. Mas história do cara que acorda cedo, dá duro no trabalho e economiza no fim do mês é ordinária demais para a galeria de arte e repetitiva demais para a novela das oito.
Como dizia G.K. Chesterton, “existe apenas uma coisa que um drama não é capaz de retratar – um dia de trabalho suado”. O mundo tem mais de mil variações da história da Cinderela, da mulher que vira princesa num passe de mágica escrito nas estrelas. Não existem tantas histórias da mulher que vence na vida por esforço próprio. Ela não vira princesa. Vira emergente. E a verdade é que ninguém gosta de emergente. A direita não gosta da emergente porque ela nasceu pobre, fora do berço. A esquerda não gosta da emergente porque ela deixou de ser pobre e agora está comprando berço nas Casas Bahia. O pobre fica condenado por uma direita que desdenha da pobreza, e por uma esquerda que nutre obsessão pela pobreza.
A aventura intelectual improvável do liberalismo começa quando somos capazes de nos encantar com a humanidade cotidiana em todas as suas imperfeições. No seu magnífico manifesto abolicionista, Joaquim Nabuco faz um convite aos brasileiros: “eduquem os seus filhos, eduquem-se a si mesmos, no amor da liberdade alheia.”
Mas vejam como é difícil amar a liberdade dos outros. É conveniente amar a liberdade que aproveitamos diretamente. O empresário quer ter liberdade econômica, o crente liberdade religiosa e o artista quer ter livre expressão. Mas quando se tenta universalizar essas mesmas liberdades, logo vem o empresário reclamar de concorrência predatória, o crente querer oficializar sua religião e o artista querer censurar o crítico.
Nabuco não pedia para amarmos a liberdade em abstrato, mas a liberdade concreta. A liberdade que não se resume à teoria, mas se realiza em pessoas. É a capacidade do hétero amar a liberdade do gay, do secularista amar a liberdade do cristão, até mesmo do sujeito que tem um iPhone amar a liberdade de quem usa Android.
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Se a Bíblia nos fala de abominar o pecado, mas amar o pecador, o liberal também pode abominar o socialismo e o nacionalismo, mas amar os socialistas e os nacionalistas. Esse talvez seja o grande desafio liberal: amar a liberdade daqueles que querem abolir a nossa. Mas é esse mesmo desafio, essa tensão, que define o que é ser liberal. E vejam que eu digo ser liberal, e não apenas pregar a filosofia liberal. Porque ser liberal é agir movido por esse amor estranho aos hábitos mais intuitivos da humanidade. O filósofo José Ortega y Gasset se maravilhava nessa característica definidora, ainda que pouco viável do liberalismo.
“O Liberalismo,” dizia Ortega y Gasset, “é a suprema forma de generosidade: é o direito que a maioria concede às minorias e por isso, o grito mais nobre que alguma vez se ouviu no planeta. Anuncia a determinação para partilhar a existência com o inimigo, mais do que isso, com um inimigo que é fraco. É incrível que a espécie humana tenha chegado a uma atitude tão nobre, tão paradoxal, tão refinada, tão acrobática, tão antinatural. Consequentemente, não é de admirar que a mesma humanidade queira ver-se livre dele. É uma disciplina demasiado difícil e complexa para ganhar raízes na terra“.
E é exatamente por ser tão rara e difícil, a realização liberal é sempre parcial, precária, até mesmo tímida. Vocês já ouviram na sala de aula que os direitos individuais foram insuficientes em garantir uma sociedade justa, que tiveram de ser complementados pelos direitos sociais. Já leram nas páginas de economia que a abertura econômica não funcionou para a prosperidade das nações periféricas e precisou ser limitada pelas políticas nacionais de desenvolvimento. Já ouviram da boca de sociólogos que o comércio pasteuriza a cultura de um povo, e por isso a produção cultural deve depender de subsídios estatais. Comunitários, socialistas, nacionalistas etc estão sempre nos lembrando que o projeto liberal fracassou porque ainda existe miséria e conflitos armados.
A verdade é que nenhuma sociedade conseguiu realizar o projeto de garantir os direitos individuais a todos os cidadãos ou de separar de fato o estado da economia. Onde avançou, o projeto libertário reduziu a pobreza, aumentou a paz e realizou a justiça, mas esse avanço sempre foi suprimido pelo movimento estatizante contrário. O socialismo não aparece na história como a superação de um liberalismo fracassado. O socialismo é a desculpa reacionária das sociedades que desistiram da difícil construção de uma sociedade verdadeiramente livre.
É pelo amor pela liberdade alheia que, como citava e agia Meira Penna, “o homem superior tenta entrar para o serviço público, sabendo… que seus princípios não poderão prevalecer”. Mas também é esse amor pela liberdade alheia que faz com que indivíduos consigam derrotar a opressão e a exploração humana nos momentos mais extraordinários.
Quando em 1869 Joaquim Nabuco iniciou sua carreira como advogado, seu primeiro cliente não foi um membro da aristocracia brasileira – foi o escravo Tomás, acusado de matar o próprio senhor. A causa abolicionista não era a mais lucrativa, mas Nabuco não agia apenas por interesse financeiro. Agia por amor à liberdade alheia.
Quando em 1937, Robert Wilson, Minnie Vautrin, John Magee e John Rabe se recusaram deixar Nanquim para proteger a vida de 200 mil homens, mulheres e crianças chineses de serem violentados e decapitados pelo exército imperial japonês, eles não agiam por conveniência política. Agiam por amor à liberdade alheia.
Quando em 1976, depois da prisão da banda The Plastic People of the Universe, Vaclav Havel e outros 241 intelectuais tchecos assinaram a Carta 77 cientes de que estavam cometendo um crime político, eles não estavam agindo por fama e publicidade. Agiam por amor à liberdade alheia.
Quando, em 1994, Paul Rusesabagina abriu as portas do hotel que ele gerenciava em Kigali para salvar 1268 tutsies do genocídio de Ruanda, ele não estava obedecendo ordens administrativas. Ele agia por amor à liberdade alheia.
Quando, em 2011, os cristãos egípcios se deram as mãos em uma corrente humana em volta da praça Tahrir para que os muçulmanos pudessem se dobrar em direção à Meca sem serem vítimas da violência dos soldados de Mubarak, eles não estavam agindo por hábito ritualístico. Eles agiam por amor à liberdade alheia.
A liberdade alheia, complementava Nabuco, é o “único meio de não ser a sua própria liberdade uma doação gratuita do Destino, e de adquirirem a consciência do que ela vale, e coragem para defendê-la“.