Por Titus Gebel
A maior parte dos modelos de governança de hoje datam do século XIX e dependem da ameaça de violência para operar. Será que a governança evoluirá logo?
Imagine que você vivesse em um sistema onde fosse obrigado a comprar um carro. A carroceria do carro, interior e motor foram pré-selecionados para você, por um provedor monopolista, que também define o preço. Não há negociação. Você precisa pagar o preço dele. Agora, se isso lhe parece estranho, apenas substitua as palavras “vendedor” por “governo” e “comprador” por “cidadão”.
Você vive em tal sistema.
Como um cidadão pagador de impostos, você precisa subsidiar tecnologias ineficientes, canais de televisão, professores de estudos de gênero e missões militares no exterior. Se você deseja rejeitá-los por preferência ou consciência, azar. De fato, você também é obrigado a adquirir uma pensão, seguro de saúde e assistência à 3ª idade com condições predefinidas—quer você concorde ou não. Também precisa financiar o seguro de saúde de outros—até daqueles que estão em melhor situação financeira.
Em outras palavras, você não é um cliente. É um subordinado.
Que contrato?
Essa imposição é vendida para você como parte de um alegado “contrato social”. Esse contrato deve existir entre cidadãos e o estado. Em algumas versões, os cidadãos, entre eles, supostamente chegaram a tal acordo ao renunciar parte de sua soberania ao estado, em troca de um bem geral melhor. Os detalhes de como se chegou a tal acordo não são tão importantes para os fãs do contrato social. No melhor dos casos é uma construção teórica. No pior, é uma metáfora desonesta.
De acordo com a tradição do direito civil (civil law), na maior parte do Ocidente, tratar tal construto como contrato é questionável, no mínimo. Um contrato legal requer concordância mútua e clareza sobre os resultados e performances. Se há uma falta de certeza sobre a performance e as recompensas, o contrato não está em vigor. Ademais, um contrato não é vinculante se uma das partes não concorda com algum dos pontos principais. De fato, se uma parte discorda subjetivamente de apenas um ponto substantivo, não há acordo vinculante. Todos esses problemas desafiam a existência de um contrato social abstrato.
Uma vez que essas objeções não podem ser dissipadas conclusivamente, contratualistas normalmente insistem que a presença física de um cidadão em um determinado estado constitui seu consenso implícito à ordem social aplicável. É como dizer que um escravo que não tenta escapar diariamente, concordou implicitamente com sua escravidão. De fato, uma relação de compromisso (trade-off) perversa ocorre nesse caso. O escravo pergunta-se para onde deveria ir, e se é arriscado demais tentar uma fuga. O cidadão tem de deixar sua casa, seu trabalho, a terra de seus ancestrais – e talvez tenha de abandonar até mesmo sua família. Portanto, a decisão em ambos os casos pode ser de permanecer no respectivo sistema. Mas ele está meramente escolhendo o menor dos males. Não há acordo real aqui.
Mas por que um grupo de pessoas, o qual chamamos de classe política, deveria decidir como você deve viver sua vida? Essa pergunta torna-se ainda maior quando percebemos que não selecionamos, encomendamos ou de outra maneira os escolhemos. Quando consideramos que não são especialmente qualificados, coloca-se em cheque toda essa instituição. Talvez você mantenha a visão de que possui o direito de controlar sua vida e suas circunstâncias como entende ser apropriado; e se você quiser algo dos outros, você pede permissão ou faz uma oferta de troca.
Disso resultam dois princípios gerais:
- Primeiro, nenhum dano deveria ser infligido a outros, pois eles têm o direito de serem deixados em paz. Não interessa se o dano é ameaçado por uma maioria ou um representante de uma maioria.
- Segundo, interações humanas devem ocorrer baseadas na voluntariedade e não sob a ameaça de dano.
Os estados de hoje – inclusive as democracias – não podem garantir nenhum desses princípios. Pelo contrário, estados são instituídos na violação.
Respostas a duas perguntas são suficientes para provar esse fato:
Que direito você tem de tomar propriedade éticamente adquirida de outrem, seja renda ou terra? E o que você faz quando outros não querem mais pagar? As respostas são simples. O governo decidiu e o governo despossessa-os. Mas isso não é, de fato, ligeiramente melhor que o roubo, baseado na lei do mais forte? Não faz diferença moralmente se você rouba um homem sob a ameaça de violência em si, ou se outorga a representantes eleitos para fazê-lo.
De qualquer forma, qualquer sistema que, por lei, incorre em expropriações em favor de terceiros não pode criar permanentemente uma condição de cooperação pacífica ou previsível. Do contrário, encoraja conflitos inacabáveis, ressentimento e agitação social. Tais sociedades não têm futuro. Elas são “Ancien Régimes”.
Uma Agência de Serviços Comunitários
Imagine que, em contraste, uma companhia privada lhe oferecesse serviços comunitários em uma dada área, como a proteção da vida, liberdade e propriedade. Esse serviço inclui polícia, bombeiros, resgate de emergência, um arcabouço legal e um judiciário independente. Você paga um montante contratualmente fixo por esses serviços por ano. A agência de serviços comunitários, como um administrador da comunidade, não pode em nenhum momento alterar unilateralmente o contrato. Você tem o direito legal de exigir que o acordo seja respeitado, e você pode reclamar danos por desempenho defeituoso.
Todo o resto se resolve. Todos podem fazer o que quiserem, desde que cumpram também a sua parte do acordo, o que inclui o respeito pela igualdade de direitos dos outros. Você só participa, pelo tempo que quiser, das ofertas de serviços. Disputas entre você e a agência de serviços comunitários são ouvidas por árbitros independentes, como é costume no direito comercial internacional. Não só as decisões dos árbitros independentes vincularão as partes, como quaisquer abusos de poder levarão os clientes a se afastarem da agência de serviços comunitários, o que a levará à insolvência.
Tudo o que sabemos sobre o bom funcionamento das empresas nos mercados pode ser transferido à governança e os serviços comunitários. Isso inclui a enorme diversidade de ofertas, o direito de não comprar algo de que não gostamos e, por último, a concorrência entre fornecedores, que garante um melhor serviço a preços mais baixos.
Esta lógica também se aplica à previdência social. Existem numerosos exemplos que mostram que as sociedades podem operar com sucesso sem coerção, por exemplo, por meio de organizações de ajuda mútua. Na era das conexões em rede on-line, a ajuda mútua poderia experimentar um renascimento, auxiliada apenas por redes de pessoas reagindo a incentivos. Mesmo aqueles cuja contribuição é relativamente modesta poderão desfrutar dessas opções.
O cidadão soberano seria imediatamente um cliente cortejado capaz de mudar de fornecedor a qualquer momento, em vez de uma vaca leiteira que deve comprar a sua liberdade através da tributação à saída. Ao contrário dos políticos do “Ancien Régime” – que tomam decisões às custas de outros sem ter a menor desvantagem econômica se algo der errado – o contratante de governança privada tem a pele no jogo. Esse fato por si só o disciplina vigorosamente.
A empresa deve manter o esforço, e não pode simplesmente alterar as regras à custa dos clientes quando isso lhe convém. A concorrência garante que haverá muitos modelos diferentes de convivência pacífica e que haverá algo adequado para todos. Os graus de liberdade, inovação e auto-suficiência serão consistentemente elevados. Se todas essas escolhas forem simplesmente muito atordoantes, surgirão sistemas com tudo incluso, que agruparão diferentes serviços. Após não mais de uma geração, é provável que esses sistemas privados sejam mais pacíficos, livres e prósperos do que tudo o que conhecemos.
O novo lar
O lar no século 21 será um lar adotado. As pessoas já são ofertadas com a escolha dentre incontáveis bens, além de poderem escolher dentre uma variedade de políticas em muitos aspectos da vida. Novos produtos técnicos entram no Mercado diariamente. Na área da coexistência humana, por que deveria ser diferente? De fato, quem escolheria manter um sistema alimentado pela coerção, a qual é cara e funciona mal em geral?
Para demonstrar como funciona mal, basta rever o quão mal as políticas e programas governamentais são concebidos simplesmente para gerir os problemas. Basta “deixar uma marca”. Todos os incentivos se alinham com a continuação da existência da burocracia, em oposição à resolução efetiva de um problema. Entretanto, são precisamente os melhores profissionais em todos os grupos de renda que não se permitem ser continuamente submetidos à dominação pela respectiva classe política sem ter nenhuma palavra relevante a dizer sobre o assunto. A comunidade privada resolve este problema de uma forma que o sistema “Ancien Régime” não consegue. Mais cedo ou mais tarde, portanto, surgirão formas alternativas.
Novas iniciativas
Talvez você pense que isto é apenas um experimento mental. Talvez eu esteja apenas tecendo uma teoria.
Já faz vários anos que esforços nesse sentido estão em curso. Em 2009, o professor de Stanford Paul Romer, hoje Prêmio Nobel, divulgou publicamente sua proposta de “Charter Cities”(Zonas Econômicas Especiais). A ideia era desenvolver áreas nos países em desenvolvimento por países industrializados com suas legislações e funcionários, de modo a criar uma zona de prosperidade local. Romer descreveu esse modelo como semelhante a “o Canadá desenvolvendo uma Hong Kong em Cuba”. Como resultado, tais abordagens foram realmente adotadas tanto em Madagascar quanto em Honduras, mas fracassaram porque os habitantes locais não gostaram da ideia de uma zona governada por outro país.
Verificou-se que uma administração que é pelo menos parcialmente implementada por empresas privadas poderia ser uma alternativa viável. A criação de zonas especiais apropriadas foi aprovada em Honduras por emenda constitucional. Estas devem ser geridas, em grande medida, de acordo com as suas próprias legislações e com o seu próprio pessoal. Após anos de preparação, parece agora que a primeira zona deste tipo será em breve estabelecida em Honduras.
Diante disso Patri Friedman, neto do Prêmio Nobel de Economia Milton Friedman, fundou, em 2008, o Seasteading Institute, que originalmente forneceu as chamadas Cidades Flutuantes, situadas fora das águas territoriais dos estados. Estudos de viabilidade técnica mostraram, todavia, que as cidades flutuantes em alto mar estão ligadas a custos substanciais devido ao movimento do mar. O Seasteading Institute, diante disso, se afastou dessa ideia para conceber tais cidades independentes, em baías abrigadas dentro de águas territoriais. Estão em curso negociações com diferentes países.
As primeiras empresas que querem operar cidades privadas livres e independentes em terra, com fins lucrativos, foram estabelecidas nos últimos anos, incluindo a Free Private Cities Inc. Vários projetos já estão em negociação. A solução para os problemas políticos de hoje poderia, portanto, vir de um setor completamente inesperado: os empresários em busca de lucro. Se isso parece loucura, basta pensar sobre o sistema operacional que está executando o dispositivo em que você está vendo este artigo: Se você estivesse insatisfeito com seu funcionamento, não escolheria um concorrente?
Titus Gebel é um empreendedor alemão com um PhD em direito. Entre outras coisas, fundou a companhia de mineração Deutsche Rohstoff AG. Para saber mais sobre o projeto de Cidades Privadas do Dr. Gebel, visite o site da Free Cities Foundation.
Para mais conteúdo sobre Cidades Privadas em Português, visite o site da Settee.
Uma versão deste artigo foi publicada originalmente em alemão no Neue Zürcher Zeitung “https://www.nzz.ch/feuilleton/staaten-20-sind-sie-ein-untertan-ld.90438”
Traduzido por Marcelo Gastal Soruco
Revisado por Marco Antonio.