Vidas secas e o abuso de poder
Alexsander Abade | 26 de setembro de 2016
Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
O escritor Graciliano Ramos, além de trabalhar especialmente em sua obra, Vidas Secas, sobre a seca nordestina e explicitar a precária situação humana nos sertões utilizando uma família simples composta pelo pai, Fabiano, sua mulher, Sinhá Vitória, os filhos – um mais novo e um mais velho – sem nomes e uma cachorrinha chamada Baleia, ele também faz uma denúncia do grande abuso de poder cometido pelas autoridades da época.
Durante o texto, será exposto como o governo age e interfere na vida de Fabiano, como a entidade estatal contribuiu para que ele fosse preso e não conseguisse ganhar uma renda com os produtos que ele mesmo produziu e como as autoridades superiores, que são o soldado amarelo, o fiscal da prefeitura e o dono da fazenda da qual Fabiano fica instalado com a família, fazem com que o vaqueiro sempre esteja em submissão e seja inferior a eles por conta do abuso de poder.
A primeira afronta começa no terceiro capítulo, “Cadeia”, no qual Fabiano vai à feira da cidade comprar mantimentos. Agora na cidade, ele resolve ir até a bodega de seu Inácio beber uma pinga. Após beber, sai do estabelecimento e vai sentar-se na calçada. E é então que o Soldado Amarelo – autoridade governamental – aparece pela primeira vez. De princípio, a atitude do soldado é até amigável com Fabiano, que é até convidado pelo primeiro a jogar um trinta e um, como podemos verificar no seguinte fragmento:
Nesse ponto um soldado amarelo aproximou-se e bateu familiarmente no ombro de Fabiano:
– Como é, camarada? Vamos jogar um trinta-e-um lá dentro?
Fabiano atentou na farda com respeito e gaguejou, procurando as palavras de seu Tomás da bolandeira:
– Isto é. Vamos e não vamos. Quer dizer, enfim, contanto, etc.
É conforme. Levantou-se e caminhou atrás do amarelo, que era autoridade e mandava. Fabiano sempre havia obedecido. Tinha muque e substância, mas pensava pouco, desejava pouco e obedecia. (Vidas Secas, p. 29)
O que podemos observar neste fragmento da obra é o respeito que Fabiano possui pelo soldado. Ao observar seu fardo, subitamente o obedeceu por ele ser autoridade e ser quem mandava. Por mais que Fabiano não quisesse ir jogar cartas e apostar seu dinheiro, ele fora. E isto não se dá apenas pelo fato de que Fabiano tinha muque e substância e que pensava pouco e desejava pouco. O fator “obediência” é seguido às cegas por conta que o soldado possuía o poder, força, influência e era a representação do governo nas ruas – e qualquer ato de desobediência por parte das pessoas resultaria em punições severas; e é o que se segue no mesmo capítulo do livro.
Ao entrarem na bodega, passarem por um corredor e chegarem em uma sala onde outras pessoas estavam jogando cartas, Fabiano e o soldado sentam- se. O que acontece na cena é Fabiano perdendo todo seu dinheiro no jogo. Furioso, ele sai da bodega e fica inquieto, pensando no que iria inventar e dizer à sinhá Vitória para explicar a perda do dinheiro. E então entra o poder da autoridade.
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O Soldado Amarelo, visto que seu parceiro saíra, fora atrás dele e questionara o motivo por qual ele fora embora sem despedir-se. Fabiano é empurrado pelo soldado, que o intimida e o insulta diversas vezes, querendo provocar qualquer tipo de reação agressiva por parte do outro lado – e isto vai apenas acontecer quando o soldado, como ato de agressão, finca com força sua botina em cima da alpercata do vaqueiro, que, nervoso, xinga a mãe do outro. O soldado usa seu apito para chamar outros soldados a virem e prenderem Fabiano por conta do ato ofensivo.
– Vossemecê não tem direito de provocar os que estão quietos.
– Desafasta, bradou o polícia. E insultou Fabiano, porque ele tinha deixado a bodega sem se despedir.
– Lorota, gaguejou o matuto. Eu tenho culpa de vossemecê esbagaçar os seus possuídos no jogo?
Engasgou-se. A autoridade rondou por ali um instante, desejosa de puxar questão. Não achando pretexto, avizinhou-se e plantou o salto da reiúna em cima da alpercata do vaqueiro.
– Isso não se faz, moço, protestou Fabiano. Estou quieto. Veja que mole e quente é pé de gente.
O outro continuou a pisar com força. Fabiano impacientou-se e xingou a mãe dele. Aí o amarelo apitou, e em poucos minutos o destacamento da cidade rodeava o jatobá.
– Toca pra frente, berrou o cabo.
Fabiano marchou desorientado, entrou na cadeia, ouviu sem compreender uma acusação medonha e não se defendeu. (Vidas Secas, p. 32)
Esta era uma das maneiras que o estado marcava sua presença na vida das pessoas no sertão: por via de autoridades que usavam sua força para repreender cidadãos e prendê-los sem eles terem feito nada, sem eles terem cometido algum crime. Porém não era esse tipo de atitude que Fabiano esperava vir por parte do governo. Para ele, o governo era bom e perfeito, e não compreendia como o Soldado Amarelo podia ser tão diferente daquilo que imaginava. Isto é visto ainda no capítulo “Cadeia”, após Fabiano ser preso:
E, por mais que forcejasse, não se convencia de que o soldado amarelo fosse governo. Governo, coisa distante e perfeita, não podia errar. O soldado amarelo estava ali perto, além da grade, era fraco e ruim, jogava na esteira com os matutos e provocava-os depois. O governo não devia consentir tão grande safadeza. (Vidas Secas, p. 35)
O abuso de poder ainda se expande na obra. No capítulo “Contas”, aparece um outro representante estatal. Apesar de ser um trecho pequeno do livro, ele nos mostra, mais uma vez, a interferência do estado na vida do vaqueiro.
Fabiano, ao sair pelas ruas para vender pedaços de carne de porco e ganhar dinheiro para sustentar sua família, descobre que, para fazer isto, é preciso pagar imposto ao governo. E ele descobre este fato a partir de um agente da prefeitura que estava próximo de onde ele vendia seus produtos. O agente o indaga sobre a mercadoria da qual ele estava vendendo e fala sobre um tal de “imposto”. Fabiano, sendo um “bruto”, não entendia dessa burocracia, não entendia nada sobre imposto e não sabia o porquê que tinha que pagá-lo ao governo. Seu descontentamento com ocorrido é grande, afinal, se o produto que ele está vendendo é dele, por que que ele é obrigado e dividir e dar uma parcela de seu esforço e lucro em dinheiro para o governo? Fabiano simplesmente não entendia e ao final, o vaqueiro desiste de criar porcos e vender suas partes pelas ruas por conta do medo de encontrar outra vez um agente da prefeitura e ele lhe cobrar o tal imposto.
“O agente se aborrecera, insultara-o, e Fabiano se encolhera. Bem, bem. Deus o livrasse de história com o governo. Julgava que podia dispor dos seus troços. Não entendia de imposto.
– Um bruto, está percebendo?
Supunha que o cevado era dele. Agora se a prefeitura tinha uma parte, estava acabado. (…) Daquele dia em diante não criara mais porcos. Era perigoso criá-los. ” (Vidas Secas, p. 101)
Contudo, as pessoas, em sua maioria, dependiam do governo para seguir com suas vidas e o consideravam perfeito, como já citado acima. Tanto é que o primeiro órgão que era chamado para ajudar e dar amparo para a população que estava na seca dos sertões era o próprio governo. Entretanto, o mesmo governo que era chamado para dar amparo na seca do sertão era o mesmo que explorava, mesmo que indiretamente, os trabalhadores sertanejos, contribuindo com a poderosa cama senhorial dos coronéis que mantinham o controle das terras e controlavam tudo e todos. Este controle territorial era mantido pelos próprios governantes que, contribuindo financeiramente para seus clientes, que eram os empreiteiros e negociantes, disponibilizavam verbas públicas – principalmente em períodos de secas – para a construção de, por exemplo, estradas e açudes criatórios. Todavia essas verbas e construções beneficiavam exclusivamente os latifundiários, os patrões, os fazendeiros, e não os trabalhadores sertanejos, que eram para ser os principais beneficiados.
Em Vidas Secas, no capítulo “Contas”, há um personagem que, além de representar superioridade e não ser um ente estatal, representa e denuncia novamente o abuso de poder na obra. Este personagem é o patrão de Fabiano, o dono da fazenda.
Fabiano vivia na propriedade de seu patrão e, como pagamento por estar ali, vendia os animais que criava para ele. Mas o patrão sempre o enganava e o roubava. Além dos produtos consumidos pela família que eram oferecidos no armazém do patrão por presos extremamente abusivos e impagáveis por eles – os preços eram tão altos que se fazia necessário comprar algumas coisas na cidade mais próxima -, o patrão, ao pagar Fabiano, sempre o pagava menos do que era para se pagar, de acordo com as contas que Sinhá Vitória realizava.
Sinhá Vitória, que “tinha miolo”, convence Fabiano de que ele está sendo enganado, e o vaqueiro decide tirar satisfações com seu patrão. O patrão, em resposta, diz que o pagamento estava certo e que a diferença entre as contas era por conta dos “juros”. Apesar disso, Fabiano não se conforma e perde a cabeça. O patrão, ao ver que estava sendo confrontado, se zanga e demite Fabiano. Mas, para não perder o emprego e ter que retornar àquela vida de andarilho que sempre teve, Fabiano se desculpa com o patrão e se submete ao roubo que era sofrido durante seus pagamentos.
Reclamou e obteve a explicação habitual: a diferença era proveniente de juros.
Não se conformou: devia haver engano. (…) Com certeza havia um erro no papel do branco. Não se descobriu o erro, e Fabiano perdeu os estribos. Passar a vida inteira assim no toco, entregando o que era dele de mão beijada! Estava direito aquilo? (…)
O patrão zangou-se, repeliu a insolência, achou bom que o vaqueiro fosse procurar serviço noutra fazenda. Aí Fabiano baixou a pancada e amunhecou. Bem, bem. Não era preciso barulho não. Se havia dito palavra à-toa, pedia desculpa. (…) Um cabra. Ia lá puxar questão com gente rica? Bruto, sim senhor, mas sabia respeitar os homens. ” (Vidas Secas, p. 99-100)
Fabiano, apesar de sofrer abusos de seu patrão, possuía a liberdade de ir embora e não trabalhar para ele. Porém esta atitude, nas condições dispostas na obra, tornar-se-ia insana pelo fato de que ele necessitava do trabalho, necessitava de dinheiro para viver naquela casa e ter, ao menos, um teto para ficar mesmo com sua felicidade estando longe, muito longe de chagar até ele.
Mas esta situação do sertanejo poderia ser outro caso o sertão não fosse tão aperreado pelo governo – que fazia a distribuição das verbas públicas para os donos das terras da região, deixando, desta maneira, os sertanejos em situações ainda piores por conta dos patrões que exploram o trabalho dos vaqueiros e usam sua superioridade, fragilidade e a necessidade de seus funcionários, para se beneficiarem às suas custas, como foi o caso de Fabiano.
O que podemos classificar na obra Vidas Secas a partir deste texto dirigido até agora como mais impactante e importante, é o fato da exploração do povo sertanejo, representado por Fabiano, cometido pelos opressores que utilizam seu abuso de poder para se beneficiar: o governo e o patrão – este que o faz com a assistência do primeiro. Porém, outra coisa que se pode destacar é o fato de que o que foi explicitado e retirado da obra neste artigo acontece nos dias atuais, não só na terra nordestina, mas no Brasil inteiro.
O poder público na obra, ao invés de dar total liberdade para que Fabiano siga sua vida ganhando dinheiro de maneira honesta e humilde vendendo seus porcos, coloca barreiras burocráticas – representadas pelos impostos – em seu caminho, fazendo que ele faça suas vendas às escuras, o que resulta na desistência de vender seus produtos por medo de ser abordado pelo agente da prefeitura novamente e este lhe cobrar os tais impostos.
Na vida real, em nosso cotidiano, não é diferente. Há Fabianos por todos os lugares. Todos os dias pessoas são impedidas de trabalhar por conta de regulamentações e impostos criados pelo estado (uns não chegam nem ao ponto de fazer isto por conta da alta burocracia e das taxas abusivas que se tem que pagar).
Um dos casos tristes deste tipo é o de Dona Josefa, que resolveu empreender da maneira mais simples e humilde possível para livrar-se da crise que assombrava ela (e que ainda assombram outros milhões de brasileiros): vendendo pelas ruas suco congelado em saquinhos (os famosos geladinhos, cremosinhos e chup-chups). Só que, em determinado dia, ela foi parada por fiscais da Subsecretaria da Ordem Pública e Social (SEOPS) do Distrito Federal que queriam apreender seu ganha-pão e impedi-la de trabalhar por ela não ter as licenças necessárias para fazer tal negócio. Por ela ser hipertensa, a abordagem dos agentes estatais lhe causou mal e ela teve um pico de pressão alta que levou seu coração a uma parada cardíaca. A caminho do hospital, infelizmente, Dona Josefa acabou falecendo.
O Soldado Amarelo, apesar de não utilizar de nenhuma taxação (não tão diretamente quanto agente que cobrava Fabiano o imposto, pois o soldado, se tratando de um funcionário público, é pago com o dinheiro arrecadado pela população, ou seja, pelos impostos – pelo roubo -, para fazer seu serviço), impõe seu poder sob Fabiano e o prende por cometer um crime sem vítima estimulado com total consciência pelo próprio soldado.
Este vivenciamento de Fabiano assemelha-se com o do comerciante Navid Rasolifard Sayan, vendedor de uma loja de tapetes. Navid foi vítima de um policial civil que o espancou dentro de sua própria loja após uma de suas clientes ter entrado em desentendimento com ele por conta de uma troca de produto por dinheiro que ele se recusou a fazer. A cliente, após ter ficado furiosa por não ter entrado em um acordo com o comerciante e não ter conseguido o dinheiro de volta, parou o primeiro carro de polícia que viu na rua para, de alguma forma, ajudá-la a resolver a situação. E é então que o agente estatal, o investigador da Corregedoria da Polícia Civil, José Camilo Leonel entra em ação.
O investigador e o comerciante começam a conversar sobre o assunto de maneira razoável. Até que o agente estatal começa a exaltar-se e dá voz de prisão ao comerciante. A confusão e as agressões cometidas pelo agente começam ao Navid recusar-se a ser algemado. Um dos funcionários tenta separar os dois, mas o investigador saca sua arma e começa a apontar para a cabeça do outro vendedor, ameaçando-o e arrastando-o para o lado de fora para jogá-lo no porta-malas do carro da polícia. O investigador, não tendo sucesso por conta da resistência de Navid, chama reforços pelo rádio. O reforço, o Grupo de Operações Especiais (GOE), chega com vários homens armados – sendo um deles com um fuzil. O comerciante então é algemado e hostilizado pelo investigador logo em seguida. (Câmeras de segurança da loja filmaram todas as ações do agente estatal, José Camilo Leonel, que ainda retornou ao local para apagar os vídeos de abuso de poder gravados pelos funcionários e das câmeras de segurança. Contudo, ele teve êxito apenas com alguns vídeos dos celulares dos funcionários, pois foi convencido que as câmeras da loja estavam quebradas.)
Como já relatado, o livro não os mostra apenas o sertanejo e suas condições miseráveis de vida como também faz uma séria crítica ao abuso de poder cometido principalmente pelo estado, esta entidade que coloca diversos empecilhos nos caminhos secos percorridos pelos personagens e que também coloca os mesmos empecilhos (de maneira bem mais intensa e forte do que na obra) em nossas vidas levadas hoje em dia.
Este texto poderia ter milhares de exemplos que aconteceram e que acontecem diariamente no Brasil e no mundo que retratam o que Fabiano e sua família passaram nas mãos dos agentes do poder dentro obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Mas, para o bem de quem o está lendo, não irei estendê-lo para tal. O que me resta, ou melhor, o que resta-nos fazer, é enxergar o que ou quem realmente está impedindo-nos de sermos indivíduos livres e combatê-los – seja o que ou quem for – para que a liberdade de todos de fazer seus negócios e de viverem suas vidas prevaleça acima de tudo (desde que não interfira na liberdade de outros), sem que ninguém ou nenhuma entidade venha colocar-nos suas imposições por intermédio da agressão e da coerção.
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