Frederick Douglass para seu antigo senhor: carta para Thomas Auld

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Carta de Frederick Douglass para seu antigo senhor Thomas Auld

No ano de 1838, o então escravo Frederick Augustus Washington Bailey (1818-1895), levou  a cabo mais um de seus planos de fuga, dessa vez através de documentos falsos da Marinha  Americana. A tentativa vingou e ele pode chegar ao Norte, onde começou a construir sua vida  como um homem livre, e se tornar Frederick Douglass, um dos grandes escritores e oradores abolicionistas do século XIX. 

Após o sucesso da publicação de sua Narrativa da Vida de Frederick Douglass, de 1845, na  qual narrou os primeiros anos de sua vida até sua fuga, Douglass sentiu o peso inconveniente que muitas vezes acompanha a fama: atrair atenções indesejadas.

Se por um lado tal obra foi  fundamental para expor os horrores da escravidão para aqueles que ainda se recusavam a  acreditar neles, por outro lado, também entregou a posição de Douglass para seu antigo  proprietário, Mr. Thomas Auld, o que levando-se em conta a realidade da época, a de que  infelizmente a lei estava contra Douglass, já que se capturado e levado de volta para seu antigo perderia sua liberdade perante a lei, fez com que se julgasse melhor que Douglass fosse para Inglaterra para lá realizar suas atividades abolicionistas.

A temporada na Inglaterra rendeu a  Douglass contato desde com a cruel realidade dos irlandeses até com os grandes defensores do  livre comércio da época, então engajados contra as Corn Laws, além de ter a oportunidade de  palestrar em favor da causa abolicionista e levantar fundos para ela.

Enquanto isso, os amigos  de Douglass julgaram mais prudente levantar uma quantia que convencesse o Mr. Auld a  reconhecer a alforriar Douglass, e assim foi feito em 1846.  

Tendo ficado na Inglaterra até 1848, Douglass retornou a América no mesmo ano, e neste  mesmo ano, decide publicar uma carta aberta a seu antigo senhor, em comemoração aos dez  anos de sua fuga. O conteúdo desta carta se encontra a seguir.

Carta Para Thomas Auld  

Senhor: 

A relação longa e íntima, embora de modo algum amigável, que infelizmente subsistiu entre você e eu, leva-me a esperar que você irá indubitavelmente sentir um peso pela grande liberdade que agora tomo ao me dirigir a você dessa maneira aberta e pública. O mesmo fato pode possivelmente remover qualquer surpresa desagradável que você possa ter em encontrar novamente seu nome junto ao meu, de qualquer outra maneira que não seja em um anúncio, descrevendo com precisão minha pessoa e oferecendo uma grande quantia para minha prisão. 

Assim, arrastando-o novamente para diante do público, estou ciente de que me submeterei a uma quantidade não inconsiderável de censura. Provavelmente serei acusado de um desrespeito injustificável, se não desdenhoso e imprudente, dos direitos e propriedades da vida privada. Há aqueles no Norte tanto quanto no Sul que nutrem um respeito muito maior por direitos que são meramente convencionais, do que por direitos pessoais e essenciais. Não são poucos em nosso país os que, embora não tenham escrúpulos em roubar do trabalhador os resultados difíceis de sua paciente dedicação, ficarão chocados com a maneira extremamente indiferente com a qual seus nomes sejam levados ao público.

Acreditando ser este o caso, e desejando responder a toda objeção razoável ou plausível à minha conduta, eu declararei francamente o fundamento sobre o qual me justifico neste caso, bem como em ocasiões anteriores em que julguei apropriado mencionar seu nome em público. Todos concordarão que um homem culpado de usurpação, roubo ou assassinato perdeu o direito à ocultação e à vida privada; que a comunidade tem o direito de sujeitar tais pessoas à exposição mais completa. Por mais que desejem aposentarem-se e procurem ocultar a si mesmos e seus movimentos do olhar popular, o público tem o direito de desmascará-los e levar suas condutas aos tribunais do país para investigação.

Senhor, você indubitavelmente faria a aplicação apropriada destes princípios geralmente admitidos, e facilmente veria a luz sob qual você é considerado por mim. Não vou, portanto, manifestar mau humor, chamando-lhe por nomes duros. Eu sei que você é um homem de alguma inteligência, e pode prontamente determinar a estimativa precisa que eu tenho do seu personagem. Eu posso, portanto, entrar em linguagem que possa parecer indireta e ambígua a outros, e ainda ser bem compreendido por você. 

Eu escolhi este dia para me dirigir a você, porque é o aniversário da minha emancipação, e não conhecendo nenhuma maneira melhor, sou levado a este ato como o melhor modo de celebrar aquele evento verdadeiramente importante. Há apenas dez anos, nesta linda manhã de setembro, o sol brilhante me viu como escravo – uma pobre e degradada posse – tremendo ao som de sua voz, lamentando ser um homem e desejando ser um bruto.

As esperanças que eu guardara, durante semanas, de uma fuga, segura e bem-sucedida, de seu alcance, foram poderosamente confrontadas nesta última hora por nuvens escuras de dúvida e medo, fazendo minha pessoa tremer e meu âmago suportar a pesada disputa entre esperança e medo. Não tenho palavras para lhe descrever a profunda agonia na alma que experimentei naquela manhã que nunca seria esquecida (pois saí à luz do dia). Eu estava dando um salto no escuro. As probabilidades, até onde pude determiná-las, eram fortemente contra este empreendimento.

As preliminares e precauções que eu havia adotado anteriormente, todas funcionaram mal. Eu estava como alguém que vai para a guerra sem armas – dez chances de derrota para uma de vitória. Uma em que eu havia confiado, bem como em alguém que me prometera ajuda, mas que apavorado com o medo da hora do julgamento, me abandonou, deixando assim a responsabilidade do sucesso ou do fracasso unicamente para mim. Você, senhor, nunca poderá conhecer meus sentimentos.

Quando olho para trás lembrando deles, mal posso perceber que passei por momentos tão difíceis. Difíceis, no entanto, como eles eram, e sombria como era a perspectiva, dei graças ao Altíssimo, que é sempre o Deus dos oprimidos, no momento que determinou toda a minha carreira terrena. Sua graça foi suficiente, minha mente se decidiu. Eu abracei a oportunidade de ouro, peguei a maré da manhã na correnteza, e um homem livre, jovem e forte, é o resultado. 

Muitas vezes pensei que gostaria de explicar-lhe os motivos pelos quais me justifiquei ao fugir de você. Estou quase envergonhado ao fazê-lo agora, pois a essa altura você pode tê-los descoberto. Vou, no entanto, refletir sobre eles. Quando ainda era apenas uma criança de cerca de seis anos de idade, eu me embebi na determinação de fugir. O primeiro esforço mental de minha parte, do qual agora me lembro, foi uma tentativa de resolver o mistério: por que sou escravo?

E com essa pergunta, minha mente jovem ficou perturbada por muitos dias, pressionando-me mais intensamente em alguns momentos do que em outros. Quando vi o condutor de escravos chicotear uma escrava, derramando o sangue de seu pescoço, e ouvi seus gritos de pranto, fui para o canto da cerca, chorei e refleti sobre o mistério. Eu tive, através de algum intermédio, eu não sei qual, alguma ideia de Deus, o Criador de toda a humanidade, dos pretos e dos brancos, e que fizera os negros servirem aos brancos como escravos. Como ele poderia fazer isso e ser bom, eu não saberia dizer.

Não fiquei satisfeito com essa teoria, que tornou Deus responsável pela escravidão, pois me doeu muito, e chorei por muito tempo e muitas vezes. Uma vez, sua primeira esposa, a Sra. Lucretia, me ouviu cantando e me viu derramando lágrimas, e me perguntou o motivo, mas eu estava com medo de contar a ela. Permaneci intrigado com essa questão, até que uma noite, enquanto estava sentado na cozinha, ouvi alguns dos velhos escravos falando de seus pais terem sido roubados da África por homens brancos e vendidos aqui como escravos. Todo o mistério foi resolvido de uma só vez.

Logo depois disso, minha tia Jinny e o tio Noah fugiram, e a grande divulgação feita pelo pai dela me fez conhecer pela primeira vez o fato de que existiam estados livres tal como existiam estados escravistas. A partir desse momento, resolvi que algum dia fugiria. A moralidade do ato, eu proponho como a seguinte: eu sou eu mesmo, você é você mesmo, somos duas pessoas distintas, pessoas iguais. O que você é, eu sou. Você é um homem, e eu também sou. Deus criou a nós ambos e nos fez seres separados. Eu não sou por natureza ligado a você, ou você a mim. A natureza não faz com que sua existência dependa da minha, ou com que a minha dependa da sua.

Não posso andar sobre suas pernas ou você sobre as minhas. Não posso respirar por você ou você por mim; eu devo respirar por mim mesmo e você por você mesmo. Somos pessoas distintas, e cada um é igualmente dotado de faculdades necessárias à nossa existência individual. Ao deixar você, eu não tomei nada a não ser o que pertencia a mim, e de maneira alguma diminuí seus meios para obter uma vida honesta. Suas faculdades permaneceram suas, e as minhas tornaram-se úteis para seu legítimo dono. Portanto, não vejo nada de errado em qualquer parte da transação. É verdade, eu saí secretamente, mas isso foi mais culpa sua do que minha.

Se eu tivesse deixado você conhecer meu segredo, você teria destruído completamente meu empreendimento; mas, apesar disso, eu ficaria muito feliz por ter feito você conhecer minhas intenções de ir embora. 

Talvez você queira saber como eu gosto da minha condição atual. Sou livre para dizer que a prefiro bastante em relação condição que ocupei em Maryland. No entanto, não sou preconceituoso contra o estado [de Maryland] em si. Sua geografia, clima, fertilidade e produtos, são tais que o tornam uma morada muito desejável para qualquer homem; e, a não ser pela existência da escravidão, não me é impossível voltar a morar nesse estado. Não é que eu ame menos Maryland, mas amo mais a liberdade.

Você ficará surpreso ao saber que as pessoas do Norte alimentam a estranha ilusão de que se os escravos fossem emancipados no Sul, eles se reuniriam no Norte. Até agora, longe de ser este o caso, o que você veria seria muitos rostos antigos e familiares de volta ao Sul. O fato é que há poucos aqui que não retornariam ao Sul no caso de emancipação. Queremos viver na terra do nosso nascimento e colocar nossos ossos ao lado dos ossos dos nossos pais, e nada menos do que um intenso amor pela liberdade pessoal nos impede de ir ao Sul. Por causa dela, a maioria de nós viveria com uma crosta de pão e uma xícara de água fria. 

Desde que deixei você, tive uma rica experiência. Ocupei posições com as quais nunca sonhei quando era escravo. Três dos dez anos desde que deixei você, passei como um trabalhador comum nos ancoradouros de New Bedford, Massachusetts. Foi lá que ganhei meu primeiro dólar livre. Era meu. Eu poderia gastá-lo como quisesse. Eu poderia comprar presunto ou arenque com ele, sem mendigar qualquer resto a qualquer um.

Esse foi um dólar precioso para mim. Você se lembra de quando eu costumava fazer sete ou oito, ou mesmo nove dólares por semana em Baltimore, e você tirava cada centavo de mim todo sábado à noite, dizendo que eu pertencia a você e meus ganhos também. Eu nunca gostei dessa conduta de sua parte – para dizer melhor, julgava-a um tanto quanto maldosa. Eu não teria servido a você assim. Mas deixe isso passar. Eu era um pouco estranho ao ato de contar dinheiro ao modo da Nova Inglaterra 

quando desembarquei em New Bedford. Eu como que tinha me enganado várias vezes. Eu me peguei dizendo “phip”, ao invés de quatro pence, e certa vez um homem realmente me acusou de ser um fugitivo, e então eu fui tolo o suficiente para me tornar um fugitivo dele, pois estava com muito medo que ele adotasse medidas para me tornar novamente escravo, uma condição que eu então temia mais que a morte. 

Logo, porém, aprendi a contar o dinheiro, assim que aprendi isso, progredi com facilidade. Eu me casei logo depois de deixar você1: na verdade, eu estava noivo antes de te deixar, e em vez de [ela] encontrar na minha companhia uma aflição, ela foi realmente uma companheira. Ela foi trabalhar em seu serviço e eu fui trabalhar no cais, e, embora tenhamos trabalhado duro no primeiro inverno, nunca vivemos mais felizes. Depois de permanecer em New Bedford por três anos, encontrei-me com William Lloyd Garrison2, uma pessoa de quem você possivelmente já ouviu falar, já que ele é bastante conhecido entre os proprietários de escravos.

Ele colocou na minha cabeça que eu poderia me tornar útil para a causa do escravo, dedicando uma parte do meu tempo para contar as minhas próprias tristezas, e as dos outros escravos, que surgiam em minha observação. Este foi o início de um estado de existência mais elevado do que qualquer outro ao qual eu já havia aspirado. Eu fui compelido a sociedade mais pura, iluminada e benevolente que o país oferece3. Dentro desta, eu nunca me esqueci de você, mas invariavelmente fiz de você o tópico da conversa – dando-lhe assim toda a notoriedade que eu poderia dar. Não preciso lhe dizer que a opinião formada ao redor de você nesses círculos está longe de ser favorável. Os que fazem parte dele têm pouco respeito pela sua honestidade e menos pela sua religião4

Mas eu ia relatar a você algo interessante da minha experiência. Não gostava muito da excelente sociedade a que me referi, antes que a luz de sua excelência exercesse uma influência benéfica em minha mente e em meu coração. Muito da minha antipatia inicial por pessoas brancas foi removida, e suas maneiras, hábitos e costumes, tão inteiramente diferentes do que eu estava acostumado nas cozinhas das plantações do Sul, me encantaram, e me deram um forte desprazer pelos costumes grosseiros e degradantes da minha condição anterior. Por isso, esforcei-me para melhorar minha mente e meu comportamento, de modo a me adaptar à posição para a qual parecia quase providencialmente chamado. A transição da degradação para a respeitabilidade foi de fato grande; e ir de uma para outra sem se carregar algumas marcas de sua condição anterior, é realmente um assunto difícil.

Eu não gostaria que você pensasse que agora estou totalmente desobstruído de todas as peculiaridades da plantação, mas meus amigos aqui, enquanto eles têm a mais forte antipatia por elas, me consideram com aquela caridade à qual minha vida passada me dá algum direito, de modo que minha condição a esse respeito é extremamente agradável. No que diz respeito aos meus assuntos domésticos, posso me vangloriar de uma moradia tão confortável quanto a sua. Tenho uma companheira trabalhadora e elegante, e quatro queridas crianças – a mais velha, uma menina de nove anos, e três bons meninos, com oito anos o mais velho, com seis anos o seguinte, com quatro anos mais jovem5. Os três mais velhos estão indo agora regularmente para a escola – dois podem ler e escrever, e o outro pode soletrar, com correção tolerável, palavras de duas sílabas.

Caro companheiro! Eles estão todos em camas confortáveis e estão dormindo perfeitamente seguros sob o meu próprio teto. Não há senhores de escravos aqui para rasgarem meu coração arrancando-os de meus braços, ou para destroçarem as mais caras esperanças de sua mãe arrancando-os de seu peito. Esses filhos queridos são nossos – não para trabalho em plantações de arroz, açúcar e tabaco, mas para zelarmos por eles, cuidarmos deles, os protegermos e os educarmos na doutrina e admoestação do evangelho – para os treinarmos nos caminhos da sabedoria e da virtude e, na medida do possível, para os tornarmos úteis ao mundo e a si mesmos. Oh! Senhor, um senhor de escravos nunca me parece tão completamente um agente do inferno, como quando penso e vejo meus queridos filhos. É então que meus sentimentos se elevam acima do meu controle. Eu pretendia ter dito mais a respeito de minha própria 

prosperidade e felicidade, mas os pensamentos e sentimentos que essa narrativa despertou em mim me impedem de prosseguir nessa direção. Os terríveis horrores da escravidão aumentam em todo o seu horrível terror diante de mim, os gemidos de milhões perfuram meu coração e esfriam meu sangue. Lembro-me da corrente, da mordaça, do chicote sangrento, da penumbra mortal que obscurecia o espírito destroçado do servo amargurado, a terrível tendência de ser arrancado da esposa e dos filhos e vendido como uma fera no mercado.

Não diga que esta é uma imagem de fantasia. Você bem sabe que eu carrego listras nas minhas costas infligidas por sua ordem, e que você, enquanto nós éramos irmãos na mesma igreja, fez esta mão direita, com a qual eu agora estou escrevendo esta carta, estar intimamente ligada à minha mão esquerda, e à minha pessoa você arrastou sob a mira da pistola, por quinze milhas, da baía para Easton para ser vendido como uma fera no mercado, pelo alegado crime de intenção de escapar de sua posse. Tudo isso e mais você lembra, e sabe que é perfeitamente verdade, e não apenas você, mas quase todos os proprietários de escravos ao seu redor. 

Neste momento, você é provavelmente o culpado de pelo menos três das minhas queridas irmãs e meu único irmão estarem em cativeiro. A estes você considera como sua propriedade. Eles estão inscritos em seu livro, ou talvez tenham sido vendidos a traficantes de carne humana, com o objetivo de encher sua própria bolsa sempre faminta. Senhor, desejo saber como e onde essas queridas irmãs estão. Você as vendeu? Ou elas ainda estão em sua posse? O que aconteceu com elas?

Elas estão vivas ou mortas? E minha querida e velha vovó6, que você transformou em um velho cavalo, para morrer na floresta – ela ainda está viva? Escreva e me conte tudo sobre elas. Se minha avó ainda estiver viva, ela não serve para você, pois nesta época ela deve ter quase oitenta anos – velha demais para ser cuidada por alguém a quem ela deixou de ser útil; mande-a para mim em Rochester, ou traga-a para a Filadélfia, e será a maior felicidade da minha vida cuidar dela na sua velhice. Oh! Ela era para mim uma mãe e um pai, na medida em que o trabalho duro para o meu conforto permitia torná-la assim. Envie-me minha avó! Que eu possa vigiar e cuidar dela na sua velhice. E meus irmãos e minhas irmãs, deixe-me saber tudo sobre eles.

Eu escreveria para eles e saberia tudo o que eu quisesse saber deles, sem perturbá-los de maneira alguma; mas, por meio de sua conduta injusta, eles foram totalmente privados do poder de ler e escrever. Você os manteve em absoluta ignorância e, portanto, roubou-lhes os doces prazeres de escrever ou receber cartas de amigos e parentes ausentes. Sua maldade e crueldade cometidas a esse respeito a seus semelhantes são maiores do que todas as listras que você colocou nas minhas costas ou nas deles. 

A responsabilidade que a você cabe a esse respeito é realmente horrível – e como você pôde cambalear com ela nesses muitos anos é algo estupendo. Sua mente deve ter ficado escurecida, seu coração endurecido, sua consciência queimada e petrificada, ou você teria, há muito tempo, se livrado da maldita carga e procurado alívio nas mãos de um Deus perdoador dos pecados. 

Como, deixe-me perguntar, você me olharia, se eu fosse uma noite escura na companhia de um bando de vilões endurecidos, entrasse no recinto de sua elegante residência e tomasse a pessoa de sua querida filha Amanda, e a levasse de sua família, amigos e todos os entes queridos de sua juventude – para fazer dela minha escrava – obrigá-la a trabalhar, e tomar seu salário – se eu colocasse seu nome em meu livro como propriedade – desconsiderando seus direitos pessoais – se eu dificultasse os poderes de sua alma imortal negando-lhe o direito e o privilégio de aprender a ler e escrever – e a alimentasse grosseiramente – a vestisse com escassez e a chicoteasse nas costas nuas ocasionalmente; mais e ainda mais horrível, se eu a deixasse desprotegida – uma vítima degradada da luxúria brutal de superintendentes diabólicos, que poluiriam, arruinariam e destroçariam sua bela alma – roubariam toda a sua dignidade – destruiriam sua virtude e aniquilariam todas as graças em sua pessoa que adornam o caráter da feminilidade virtuosa?

Eu pergunto como você me consideraria, se tal fosse minha conduta?

Oh! O vocabulário dos condenados não permitiria uma palavra suficientemente infernal para expressar sua ideia de minha perversidade provocadora da ira de Deus. No entanto, senhor, o seu tratamento para com as minhas amadas irmãs é, em todos os pontos essenciais, precisamente como o caso que eu supus agora. Incriminador como seria este ato da minha parte, não seria mais do que aquele que você cometeu contra mim e minhas irmãs. 

Eu vou agora levar esta carta para um fim; você ouvirá falar de mim novamente, a menos que você me deixe ouvir falar de você. Pretendo usar você como uma arma para atacar o sistema escravista – como forma de concentrar a atenção do público no sistema e a se aprofundar no seu horror ao tráfico de almas e corpos humanos. Usarei você como um meio de expor o caráter da igreja e do clero americano – e como um meio de levar essa nação culpada junto com você para o arrependimento.

Ao fazer isso, não nutro nenhuma malícia em relação a você pessoalmente. Não há telhado sob o qual você estaria mais seguro do que o meu, e não há nada em minha casa que possa ser preciso para o seu conforto, que eu não daria prontamente. De fato, eu deveria estimar como um privilégio dar a você um exemplo de como a humanidade deveria tratar um ao outro. Eu sou seu companheiro, mas não seu escravo 

Frederick Douglass 

Escrita em 3 de setembro de 1848. 

Publicada primeiramente em 8 de setembro de 1848, no jornal abolicionista The North Star, de propriedade do próprio Douglass. Em seguida, foi publicada em 22 de setembro de 1848, no jornal abolicionista The Liberator, de propriedade do também destacado abolicionista William Lloyd Garrison 

Fonte: https://en.wikisource.org/wiki/Letter_to_Thomas_Auld. Tradução, introdução e notas de Felipe Prestes Batista. 

Notas 

1. Anna Murray-Douglass (1838–1882) foi a primeira esposa de Douglass, com a qual ele estava casado na época em que escreveu esta carta. 

2. William Lloyd Garrison (1805-1879), importante abolicionista norte-americano no século XIX, e mentor intelectual de uma geração de militantes abolicionista, incluindo o próprio Douglass. 

3. Referência a Sociedade Americana Antiescravista, sociedade abolicionista da qual Douglass por muitos anos fez parte. 

4. Em suas autobiografias, Douglass expõe como seu antigo dono, Thomas Auld, e outros proprietários de escravos de Maryland, tentavam justificar a escravidão através de uma leitura bastante problemática do cristianismo: a de que negros seriam amaldiçoados por serem descendentes de Cã, filho amaldiçoado de Noé. 

5. A filha e os filhos que Douglass teve, e ao quais ele se refere nesta passagem, são, seguindo a ordem crescente de nascimento: Rosetta Douglass (1839–1906), Lewis Henry Douglass (1840–1908), Frederick Douglass Jr (1842-1892) e Charles Remond Douglass (1844–1920). No ano seguinte ao desta carta, nasceu Annie Douglass (1849-1860), que infelizmente só viveu 11 anos. 

6. É importante destacar que nos anos seguintes Douglass fez questão de se desculpar publicamente pelas acusações feitas nesta carta ao Mr. Auld sobre este ter mandado sua avó, Betsy Bailey, para morrer, sendo que na verdade Mr. Auld não fez isso.

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