Luiz Eduardo Peixoto | 26 de dezembro, 2017
Na narrativa histórica sobre o Brasil, é comum sermos apresentados a nossa formação por um discurso que associa a situação atual com a ação despudorada e desmedida de exploração da monarquia portuguesa – posteriormente aprofundada pelo “imperialismo” britânico e estadunidense. Especialmente durante o ensino básico, a apresentação a formação das colônias é pretexto para análise atual da situação do país, dado que nestas terras de fato houve subtração de recursos por meios muitas vezes coercitivos e rendendo poucos dividendos aos moradores de então. Somos colocados como um território indefeso frente o poderio e ambição de uma elite exploradora, impiedosa.
Além disso, ao sermos confrontados com a história de desenvolvimento e evolução de nações hoje ricas e com alto nível de vida, escancara-se suposta natureza de soma zero no jogo entre nações – onde algumas sempre tem que perder, para outras prosperarem de forma “insana”. Nesta lógica, a ascensão de uns significa condenar outros a miséria extrema.
Seriam os precedentes patriarcais do Império no Brasil e um instinto de sobrevivência de seus brasileiros em meio à forte extração então ocorrendo no país uma explicação suficiente para as Lava-Jato, mensalões e propinodutos que nos envergonham diariamente e surrupiam boa parte do que produzimos? Seria nosso governo, de caráter extrativo e com atuação concentradora de renda e poder, explicado pelos desmandos da Coroa Portuguesa em suas colônias? E, finalmente, nosso baixo dinamismo econômico, a pouca competitividade no exterior de nossas empresas e a relativa pobreza do brasileiro frente a seus pares ao redor do mundo um resultado óbvio do jogo de cartas marcadas que é o capitalismo globalizado?
Vejamos. O Brasil se tornou independente em 1889, há quase 130 anos. Ainda que um resquício da estrutura da monarquia tenha perdurado, e alguns privilégios efetivamente se mantiveram, a rápida saída de muitos membros da Coroa e uma mudança essencial na natureza econômica do país à época, com a emergência do café e de uma incipiente indústria e comércio, amparados nas rendas do grão, iriam transformar radicalmente o país. No momento da independência, ainda éramos fortemente rurais, recém-saídos de um regime escravocrata, com mídia incipiente, instituições fracas (quando existentes), pouca massa crítica e Estado pequeno.
As décadas seguintes que delineariam a história política, as instituições que coordenariam o país e o modelo de Estado que iria amparar nossa contemporaneidade. Fomos, em primeiro momento, governados por uma proxy que alternou entre coronéis e de oligarquias rurais, em especial dos estados de São Paulo e Minas Gerais, que garantiram curta estabilidade política por meio de acordos entre líderes.
A expansão das cidades e da indústria, no entanto, estava alterando a balança de poder no Brasil, com nossa população urbana reivindicando maior participação na política do país. Percebendo esta oportunidade, e na toada de movimentos trabalhistas de cunho autoritário ao redor do mundo na época, nos anos 30 sofremos com nosso primeiro Golpe de coronéis, na figura de Getúlio Vargas. Vargas iria instituir uma série de mudanças na condução da economia e da vida pública no país, e levaria os “acordos”, até então pontuais, a novos níveis; o fascismo e a inspiração em líderes como Mussolini, Hitler e outros ditadores europeus estaria na base do Estado Novo.
A estratégia era clara: comprar apoio por distribuir poder e esperança, por meio de um populismo que iria moldar a codificação de leis e instituições que guiariam muito do nosso trajeto socioeconômico – e até hoje perduram e influenciam nos rumos do país. A CLT, de inspiração na Itália fascista, e resultado de um acordo entre sindicatos urbanos – que tinham, até então, relativa baixa adesão nas cidades e sofreram um impulso após as medidas – e travestida de “direitos aos trabalhadores” até hoje engessa a autonomia do cidadão na relação com a empresa, coibiu a criação de empregos pela iniciativa privada e impediu nossa inserção em cadeias de produção que iriam ser a base da economia mundial na segunda metade do século XX, do qual fomos excluídos não por maldade do “capitalismo selvagem” e sua suposta lógica exclusória, mas por simples impossibilidade e encarecimento do custo da mão de obra, dada excessiva burocracia, bem como por uma sujeição do Estado as pressões protecionistas de alguns grandes industriais organizados.
Os empresários da nascente industria, no entanto, foram divididos no que Getúlio considerou prioritário; os agraciados receberam os benesses de subsídios e de incentivos de toda sorte. No campo do trabalho, inclusive, a disparada da inflação permitiu um arrocho salarial sem precedentes na história do país, com a queda real do salário no país de 16% em 1953 – correlacionada à instituição, em 1936, do salário mínimo, que permitiu o controle dos salários via saltos inflacionários.
A Lei do Inquilinato, que congelou o preço dos aluguéis, e foi feita em época de alta da inflação, inviabilizou moradias baratas em centros de grandes cidades, com a disparada nos preços, expulsando moradores nas áreas urbanas de forma brutal e duradoura, e impulsionando os primeiros bolsões de pobreza em áreas periféricas em cidades com São Paulo, Salvador e Recife. Até o carnaval é uma inspiração com vistas ditatoriais, inspirado nas propagandas nacionalistas de Hitler.
A perspicácia de Vargas deixaria um legado nefasto à política nacional, formando quadros inspirados diretamente pelo general – a fórmula mágica de gastos do governo sustentados por inflação, altos juros e endividamento, agigantamento da máquina pública e pactos com setores empresariais de influência na opinião pública (os “grandes vencedores”, prioritários) resultaria num populismo desmedido que nos levaria a tantas crises fiscais, econômicas, cambiais, políticas – e confeccionaria o tecido poroso e encardido que hoje resulta em paralisia no país, expondo a sanha de sanguessugas que se utilizam de uma máquina pública inchada para se servir de privilégios e de dinheiro do contribuinte.
JK, por exemplo, inspirado por Vargas e pela escola estruturalista da CEPAL – ponto de partida para a política econômica tão cara a Guido Mantega, Belluzo e pares da UNICAMP e outras escolas nacional-desenvolvimentistas – voltou-se aos bens duráveis de consumo, em especial a indústria automobilística, redirecionando todos os esforços nacionais para isto – ou seja, mais arrocho salarial via inflação em alta e crise fiscal anunciada. A isso soma-se a megalomania de Brasília, que isolou em um novo castelo – trocando a tropicalidade carioca pela aridez planaltina – e nos legou uma dívida injustificável.
Os militares dobrariam a aposta no nacional-desenvolvimentismo, fazendo do planejamento central de cima-para-baixo uma obsessão, manifestada na destruição e perseguição de qualquer agência ou organismo autônomo de sociedade civil no país. Além disso, o controle sobre a sociedade e a economia, (novamente) o descontrole fiscal e monetário, com a impressão de moeda para financiar suas dívidas de projetos gigantescos e de subsídios nos legaria amua década inteira perdida nos anos 80, com o caos da hiperinflação e juros de longo prazo altíssimos. Dilma e Lula reeditaram a aposta, com a Nova Matriz Econômica, claramente inspirada no autoritarismo dos militares e Getúlio.
O problema com a narrativa do historicismo é que ela vira a justificativa. Aí torna-se um “o Brasil não cresce por isso”, outro “é óbvio que é essa a situação, nossa história e isso e aquilo” e, por fim, a conclusão é o clássico “o Brasil não tem jeito mesmo”. Depositamos no passado a culpa por uma série de nossos problemas em o que aconteceu, na história, que nos revela agentes externos que construíram sua riqueza com base em nossa pobreza – sempre a mesma muleta, a desculpa para qual tanto se rouba e se apropria da população, e motivo por qual nenhuma reforma deve ser tentada. Um exemplo vem, novamente, de Getúlio, que justificou maior protecionismo discursando: “O combate ao colonialismo econômico é precisamente um dos pontos doutrinários em que todos os brasileiros estão de acordo”, após reafirmar seu repúdio ao livre mercado, cujos seguidores chamou de “mentes impermeáveis aos fatos”. O problema era externo, e a chave da prosperidade estava em fechar o país, incentivar os tais “empresários brasileiros” (leia-se, amigos de Getúlio) com gastos públicos, e imprimir moeda, comprimindo salários via inflação.
Os sucessivos usos da máquina pública, se vê, não são especialidade do governo atual. A repetição da história, em que vemos “pedaladas fiscais” para fechar as contas, corrupção endêmica, alta da inflação e paralisia política não é um reflexo puramente da formação colonial, e sim o resultado de uma série de atitudes conscientes tomadas pelo grupo político no poder, que fatiou e dividiu o governo para uma coalizão enorme e fisiologista – e inchou ainda mais o monstro da máquina pública brasileira, hoje em cerca de 46% (considerando o déficit nominal), ao mesmo tempo em que não entrega os serviços “básicos” prometidos a população, e impede a economia de andar com as próprias pernas. Distribuiu dinheiro do contribuinte, via BNDES, para grandes grupos empresariais amigos (mais de 500 bilhões desde 2011) como a JBS, Odebrecht e a falida LBR.
Olhando nossa história recente, é impossível não notar uma tendência a limitação da ação individual espontânea, que minou iniciativas privadas e destruiu a autonomia em diversas esferas da sociedade brasileira. Aprendemos a encarar dependência no Estado como algo indispensável, e hoje clamamos por ele em qualquer situação, ainda que reivindiquemos maior participação individual, menos impostos e critiquemos com vontade e tristeza a ciranda interminável de corrupção e desvios na política. Como bem expõe Bruno Garschagen no ótimo Pare de Acreditar no Governo, o brasileiro médio externa um paradoxo: acredita que os políticos são corruptos e criminosos, “todos iguais” e ineficazes, porém pede como solução uma máquina pública ainda mais inchada, com maior tamanho do governo. Se isto pode vir de uma mentalidade estatista incorporada por nossos colonizadores, – no cerne do pensamento português do século XVIII e XIX – já pode-se dizer que o Brasil moderno tem sua própria feição, e a construção posterior ao fim do Império, em nosso aparato nacionalista e populista, é um grande indicativo disto.
Se nossos clamores “estadistas” não tem explicação histórica, qual seria a outra? O cientista político João Pereira Coutinho, coloca esta “condição” como um processo que se auto-alimenta, dado que em países como o Brasil (e Portugal, diga-se de passagem) “o estado está presente de todos os lados, do berço ao caixão; o Estado é pai e o único jeito de respirar é se tornar um pouco órfão”. A onipresença da máquina estatal em todos os aspectos da vida brasileira se consolidou no século XX, com os grandes aparatos nacionalistas criados por populistas como Getúlio e Juscelino, e, no longo prazo, formaram uma população dependente, que espera do Estado a solução para seus problemas – e pouco se percebe como a saída mais simples e confiável de suas próprias mazelas, reduzindo seu apetite por risco, sua auto-confiança e auto-determinação. O resultado é um povo que, se extremamente trabalhador, acaba por subestimar as próprias capacidades, reduzindo nosso potencial de crescimento ao longo do tempo.
Ora, é razoável explicarmos puramente nosso fracasso em nos tornarmos uma nação com um nível de qualidade de vida decente pelas agruras e injustiças de uma ocupação que se encerrou há mais de dois séculos, e se deu em um ambiente totalmente diverso ao nosso? Depositarmos a razão da baixa renda do brasileiro na concorrência mundial, que permitiu a tantos países que eram ainda mais pobres que nós há 50 anos atrás, tirarem bilhões de pessoas da miséria absoluta pela integração ao comércio mundial e às novas cadeias de produção globalizadas? Aliás, sendo o Brasil um dos países mais fechados do mundo, com apenas 14% da nossa economia passando por exportação ou importação de bens e serviços, como culpamos a globalização e o comércio mundial – quando pouco participamos deste?
Está mais que na hora do Brasil – em especial seus formuladores de opinião e políticas públicas, intelectuais, políticos e empresários, mas também sua população, que deve estar ciente da própria capacidade – encarar a necessidade de interromper este mecanismo excludente e limitador de capacidades que se auto-alimenta. Que permite que grupos de pressão se aproveitem de nosso Estado gigante para legitimar e perpetuar seus privilégios. É preciso entender que, sem desconstruir e limitar uma máquina que serve mais para coagir, extrair e distribuir para amigos do Rei as proteções e dinheiro dos tributos do que proteger os que mais necessitam de sua proteção, continuaremos avançando pouco e estaremos sempre relegados ao atraso do populismo, condenados a corrupção endêmica, e com uma economia frágil e pouco dinâmica – e iremos novamente perder o bonde das oportunidades, e corremos o risco de entrar numa espiral decadente, com progressiva queda de riqueza. O que falta ao Brasil não é mais Estado, para fazer frente a suposta “dependência” do país, mas tornar os brasileiros menos dependentes de um organismo gigante, ineficaz e concentrador, promovendo a livre iniciativa e a capacidade individual.
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Luiz Eduardo Peixoto é graduando em Economia na Universidade de São Paulo (FEA-USP) , técnico em Química pelo Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC), e participou do Programa de Coordenadores do Students For Liberty Brasil.
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