André Ramos explica por que o intervencionismo é tão defendido no Direito brasileiro

Luan Sperandio | 10 de agosto, 2017

André Luiz Santa Cruz Ramos é doutor em Direito Empresarial pela PUC-SP e autor de diversos artigos acadêmicos e livros na área jurídica.

Na Conferência da Austríaca de 2017, realizada pelo Instituto Mises Brasil, o professor apresentou suas ideias sobre a cultura do intervencionismo no ensino jurídico brasileiro e o dirigismo contratual, elencando diversas críticas sobre suas consequências, como o risco moral, a criação de um paternalismo judicial e de incentivos à litigiosidade.

Nesta entrevista ele conta mais sobre essa cultura, além de expor suas ideias sobre propriedade intelectual, externalidades negativas e sobre a função social, um dos princípios norteadores do Código Civil vigente no Brasil.

SFLB: Você tem se manifestado que há uma cultura do intervencionismo no ensino jurídico brasileiro. Podemos dizer que os acadêmicos de direito são submetidos a uma doutrinação estatista? Há na academia jurídica brasileira pluralidade de ideias? Isso tem avançado?

AR: Não diria que há uma doutrinação, porque não creio que em todos os casos seja algo intencional por parte dos professores. Nosso país tem uma Constituição de viés claramente socialista, que criou uma máquina estatal enorme. Isso não apenas exige um forte aparato burocrático e uma tributação exorbitante, mas também acaba refletindo na própria conformação do ordenamento jurídico, que decorre direta ou indiretamente da Constituição.

Outros fatores que contribuem para essa cultura do intervencionismo no ensino jurídico, creio eu, são os seguintes: (i) o controle do MEC sobre os currículos dos Faculdades de Direito no país (certa vez me pediram para inserir em meu plano de ensino da disciplina Direito Empresarial algo relacionado a questões étnico-raciais e indígenas, e disseram que era “para atender uma exigência do MEC”! e (ii) a transformação das Faculdades de Direito em cursos preparatórios para o Exame da OAB e concursos públicos.

Leia também

SFLB: Como a doutrina justifica o dirigismo contratual e a relativização da autonomia da vontade e quais as consequências que se verificam a partir desse intervencionismo aqui no Brasil?

AR: Resumidamente, alega-se que as relações contratuais, hodiernamente, tendem a ser assimétricas, especialmente em certos tipos de contratação (contrato de emprego e contrato de consumo, para mencionar os exemplos mais sintomáticos desse dirigismo), o que exigiria uma intervenção estatal para proteger as partes contratantes mais fracas, as quais o direito normalmente classifica com termos técnicos como ‘vulneráveis’ ou ‘hipossuficientes’. Grosso modo, pode-se dizer que é uma forma vulgar de aplicação da velha e falaciosa teoria das falhas de mercado.

Algumas consequências que apontei em meu estudo são:

(i) risco moral: essas partes protegidas tendem a perder a noção de responsabilidade ao assinar um contrato, já que ‘contrato não vale mais nada mesmo’…

(ii) paternalismo judicial: cria-se uma jurisprudência extremamente protetiva que exacerba o risco moral já referido e torna os litígios contratuais uma espécie de novela mexicana do mocinho contra bandido; outras vezes, cria-se um antipaternalismo também pernicioso, quando juízes não-simpatizantes do dirigismo acabam ignorando problemas contratuais sérios, como fraude etc.;

(iii) incentivos à litigiosidade: afinal, já que ‘contrato não vale mais nada mesmo’, porque vou cumprir voluntariamente um acordo se posso ir a juízo e me livrar da obrigação assumida sob as mais variadas e abstratas alegações, como abusividade da cláusula ou descumprimento da ‘função social do contrato’;

(iv) ciclo vicioso intervencionista: o excesso de dirigismo contratual gera problemas contratuais que acabam gerando mais intervenção… não é à toa que os setores de mercado que mais abarrotam o Judiciário com litígios contratuais são os regulados – financeiro, telecomunicações, seguros, planos de saúde etc. -, cujos contratos são fortemente dirigidos pela lei e por normais infra-legais das respectivas autoridades regulatórias.

SFLB: No direito comparado há países em que o pacta sunt servanda ainda predomina sobre essa ideia de relativização dos contratos?

AR: Sinceramente não conheço a situação de cada país, mas posso garantir que o Brasil não é o criador dessa ideia. Trata-se, como de costume, da importação de uma teoria de países com tradição intervencionista como a nossa. Em países com uma maior tradição liberal, parece-me que os contratos ainda são respeitados, como demonstram alguns índices de liberdade econômica publicados anualmente (Heritage Foundation e Doing Business, por exemplo).

SFLB: Qual seu posicionamento em relação a função social (do contrato, da propriedade e da empresa)?

AR: Função social é apenas mais um ‘conceito jurídico indeterminado’ que serve para a legitimação de decisões intervencionistas, gerando insegurança jurídica. O ordenamento jurídico está abarrotado de expressões desse tipo.

Vivemos, diz-se, a era pós-positivista do Direito (ou a era do neoconstitucionalismo), na qual predominam os conflitos principiológicos, que reclamam solução pela via da ‘ponderação de interesses’. Essa técnica de decisão, alega-se, não exclui um princípio em detrimento de outro, mas apenas reconhece sua maior preponderância num determinado caso concreto.

Ocorre que, no final das contas, os princípios acompanhados da expressão ‘social’ quase sempre predominam. É por isso que nossa Constituição está repleta de princípios liberais, como livre iniciativa, livre concorrência, propriedade privada etc., mas que possuem uma carga normativa fraquíssima, tendendo a perder eventuais disputas pela via da ponderação de interesses quando confrontados com princípios sociais.

Enfim, é mais um sintoma dessa cultura do intervencionismo no Direito.

SFLB: Muitos defensores de uma sociedade de mercado acreditam que é preciso haver intervenção do Estado tendo em vista a ideia de “monopólios naturais”. Como você enxerga isso?

AR: Thomas DiLorenzo, economista da nova geração da Escola Austríaca, termina um texto intitulado “o mito do monopólio natural” com a seguinte frase: “A teoria do monopólio natural é uma ficção econômica do século XIX criada para defender privilégios monopolísticos do século XIX, e não possui lugar em economias modernas do século XXI”. E ele tem razão.

Mesmo economistas do mainstream não abraçam mais essa teoria como antes, tanto que os mercados tradicionalmente objeto desses monopólios – as famosas ‘public utilities‘ – foram sendo ‘privatizados’ no mundo todo nas últimas décadas, inclusive no Brasil.

Infelizmente, porém, ainda predomina uma ideia de que esses setores, para saírem do regime de monopólio e funcionarem em regime concorrencial, precisam de regulação estatal, por mais paradoxal que possa ser essa afirmação. O resultado, sabemos, é desastroso: captura regulatória, protecionismo, burocracia, barreiras à entrada que eliminam a concorrência potencial, controle de preços (que dificultam o cálculo econômico racional), pacotes de socorro (que impedem o funcionamento do mecanismo de lucros e prejuízos) etc.

E o pior: a cultura do intervencionismo faz com que, na ocorrência desses problemas, as pessoas peçam por mais regulação, e não o contrário.

SFLB: Qual a visão central de sua tese de doutorado sobre a atuação do CADE e a legislação antitruste brasileira?

AR: A tese apresenta alguns fundamentos contra a legislação e as agências antitruste:

(i) a história que nos contam sobre o assunto é mentirosa: leis e agências antitruste surgiram não para proteger os consumidores e coibir abusos do ‘poder econômico’, e sim para proteger setores empresariais que estavam perdendo mercado diante da crescente competição, mas que ainda eram fortes politicamente; e

(ii) a teoria econômica que fundamentou o antitruste na sua origem é equivocada, partindo de conceitos errados de monopólio e concorrência: usando modelos irreais, como o de ‘concorrência perfeita’, essa teoria exacerba a preocupação com as supostas ‘falhas de mercado’, ignora o fato de que monopólios são criados e mantidos pelo próprio estado (este, aliás, o maior e pior monopólio de todos!) e desconsidera a inexorável realidade de que a concorrência é um processo dinâmico e incerto de rivalidade e descoberta constantes, que depende apenas da liberdade de entrada, liberdade esta que quem mais solapa é, mais uma vez, o próprio estado.

O resultado, novamente, é conhecido: empoderamento do aparato burocrático estatal e desvio de recursos e preocupações dos empresários para atender essa burocracia, e não os desejos dos consumidores, como ocorre numa economia verdadeiramente livre.

SFLB: Muitos libertários têm dificuldade em relação a ideia de propriedade intelectual, pois temos autores a defendendo (como Ayn Rand) e outros defendendo sua abolição (Stephan Kinsella). A ideia de propriedade intelectual se justificaria moralmente? A PI é necessária para possibilitar mais inovações em algum setor?

AR: Inicialmente, é preciso fugir desse dualismo libertários x não libertários em qualquer tema relacionado à liberdade, até para evitar que nossos argumentos sejam rechaçados por vício de origem, do tipo “ih, lá vem o anarcocapitalista radical com suas ideias utópicas etc”. Ademais, hodiernamente, a crítica à ‘propriedade intelectual’ está bem longe de ser algo restrito a um grupo político ou ideológico. Dito isso, há duas coisas que precisam ser destacadas nesse debate.

Em primeiro lugar, não existe ‘propriedade intelectual’, e sim monopólios intelectuais, e isso é algo praticamente consensual hoje, inclusive entre os próprios defensores da PI. Ideias e criações não são bens escassos, então a tal da PI nada mais é do que criação de escassez artificial pelo uso da força estatal. Isso é uma medida contra a propriedade real, e não em defesa da propriedade.

Em segundo lugar, esses monopólios intelectuais, em vez de criarem incentivos à inovação, acabam desestimulando-a, na medida em que restringem a concorrência: o monopolista fica acomodado com o privilégio (muito longo, por sinal, como já comprovaram inúmeras pesquisas empíricas), e os concorrentes ficam desencorajados a investir em áreas já protegidas, com medo de represálias administrativas e judiciais.

Além disso, uma série de consequências não intencionais ocorrem, como a paralisação do brainstorming criativo e a distorção na alocação dos gastos empresariais.

Enfim, argumentos contrários aos monopólios intelectuais, especialmente nos dias atuais, quando vivemos a era da internet, existem aos montes e são absolutamente irrefutáveis, tanto do ponto de vista teórico quanto do ponto de vista empírico. Existem, por exemplo, estudos de caso demonstrando que setores sem enforcement de PI são muito mais inovadores e criativos do que setores com muito enforcement de PI (caso do mercado da moda, como bem explicado por Johanna Blakley em palestra disponível no TED).

E repito: ser contra a PI não é apenas uma excentricidade libertária, como muitos dizem apressadamente, fugindo da discussão para esconder a incapacidade de repensar esse assunto. O melhor trabalho que já li contra a PI, por exemplo, foi o livro ‘Against the intellectual monopoly’, dos economistas Boldrin e Levine, e até onde sei, salvo engano, eles não são libertários.

SFLB: Por fim, diante de tantos problemas no ambiente jurídico brasileiro, o que você recomendaria para alguém que está prestes a iniciar o curso de direito?

AR: Se esse alguém é um liberal ou libertário que deseja se contrapor a essa cultura do intervencionismo a que me refiro, recomendo que siga sua vocação e conclua o curso numa boa instituição, já que sem isso, infelizmente, não poderá trabalhar na área (afinal, estamos falando da profissão mais regulamentada que existe, tendo uma guilda corporativa fortíssima, a OAB, para manter essa reserva de mercado a todo custo).

Em contrapartida, é fundamental que essa pessoa procure se educar por conta própria, e a internet está aí para isso. Há uma infinidade de material (artigos, livros, aulas, palestras, podcasts etc.) disponível facilmente para um estudante autodidata, interessado e disciplinado.

Se, porém, o aluno ficar restrito ao programa oficial da faculdade, imposto e controlado pelo MEC, corre sério risco de se tornar um intervencionista.

[hr height=”30″ style=”default” line=”default” themecolor=”1″]

Esta entrevista não necessariamente representa a opinião do Students For Liberty Brasil (SFLB). O SFLB tem o compromisso de ampliar as discussões sobre a liberdade, representando uma miríade de opiniões. Se você é um estudante interessado em apresentar sua perspectiva neste blog, envie um email para [email protected]

Students For Liberty is the largest pro-liberty student organization in the world.

To get started, please select your region on the map.

Asia Pasific